7.12.15

Vale a pena ler





George Steiner & Cecile Ladjali
Lisboa: Dom Quixote, 2005
Cécile Ladjali é uma escritora e professora ainda jovem, que tem leccionado francês em escolas suburbanas e multiétnicas da grande Paris, onde, em geral, ninguém deseja ser colocado; George Steiner é um crítico literário e filósofo, professor em universidades com prestígio – Oxford, Harvard, Cambridge. Ladjali, ao que parece, contacta entusiasmada com os seus inquietos alunos adolescentes, quase todos socialmente desfavorecidos; Steiner, define-se como um leitor solitário, não sendo difícil imaginá-lo, de lápis na mão, em diálogo com os clássicos, contactando esporadicamente com estudantes de elite e outros intelectuais de estatura internacional.
O que levou, então, estas duas pessoas que se movimentam em universos tão distintos, a publicar em conjunto, em meados de 2003, um livro subordinado ao título Éloge de la transmission: le maître et l’elève? A resposta é muito simples: ambos pensam que a missão fundamental de quem ensina é ajudar os alunos a pensarem por si próprios, sendo, para isso, necessário, entre outras coisas, que contactem com a literatura e se iniciem na criação literária.

Um incauto dirá que esta preocupação nada tem de extraordinário: não é aceitável como, até, louvável. Mas tem e não é uma eventualidade do presente. Para não recuarmos muito no tempo, situamos nas décadas de sessenta e setenta e seguintes a polémica que rodeia essa preocupação, a saber: devemos concentrar-nos no contexto vivencial dos alunos para delinearmos o curriculum, que deve estar de acordo com esse contexto, de modo que os alunos venham a integrar-se nele? Ou devemos partir do princípio que os alunos podem interessar-se por outros contextos além do seu, devendo o curriculum ser delineado em função daquilo que intrinsecamente possui um valor real para o desenvolvimento da humanidade e de cada pessoa?
Ao contrário da primeira, esta segunda alternativa assenta no pressuposto de que os conteúdos a ensinar não têm todos o mesmo valor: uns valem mais que outros. Nega, claro está, o relativismo cultural, tão acarinhado pelas correntes pós-modernas, relativismo que, na óptica de muitos, prevalece nos actuais sistemas educativos ocidentais com consequências devastadoras para as novas gerações, sobretudo para os sujeitos mais desfavorecidos sob o ponto de vista social, porquanto ficam praticamente impossibilitados de contactar com o que se entende não ser “da sua cultura” e, em consequência, num plano agravado de desigualdade de oportunidades, no que concerne tanto ao seu percurso escolar, como aos seus percursos pessoal e profissional.
Arriscando-se a serem considerados elitistas (pois quando se trata de populações das periferias e - muito importante - pobres, é comum evocar-se, como salienta Fernando Savater, o “respeito pelas origens”, só sendo lícito ensinar no estreito quadro dessas origens), Steiner e Ladjali afirmam claramente a sua posição: conviver desde cedo com Flaubert, Bruno, Goethe, Proust ou Wilde proporciona a alegria de aprender e de criar. E é essencialmente deste assunto que falam no presente livro que as Publicações Dom Quixote, em boa hora, decidiu publicar entre nós, em 2005.
Passemos, então, à apresentação: esta é uma obra de reduzidas dimensões (tem pouco mais de cem páginas), mas, não obstante, expõe e discute profundamente, numa escrita apelativa que prima pela clareza, ideias e práticas educativas, numa conjugação pouco comum. Após um prefácio, em forma de diário, redigido por Ladjali, o livro completa-se com diálogos, ou entrevistas, entre os autores, ocorridas no programa de rádio France Culture. São sete esses diálogos: Elogio da dificuldade, Criar na escola, Gramática, O professor, Os mestres, Os clássicos e Na turma.
Logo nas primeiras páginas, somos informados que a professora Ladjali, além de proporcionar leituras que os seus alunos do secundário provavelmente nunca fariam se não andassem na escola – eis uma mais valia da escola –, levou muitos deles (não todos) a escrever sonetos e uma peça de teatro. Os trabalhos, que as figuras ilustram, foram dignamente apresentados ao público: os sonetos em forma de livro, Murmures, com um prefácio de Steiner; a peça, Tohu-Bohu, encenada e representada.
Ficamos também a saber que todo este trabalho foi realizado num clima de grande exigência e esforço, de muitos ensaios e correcções, de grande investimento e alguns desapontamentos, de optimismo doseado com algum cepticismo, mas também de muitos livros distribuídos e alguns perdidos. Este é o risco que se corre quando se fazem, indiscriminadamente, empréstimos de livros, mas é nele que assenta a primeira abordagem metodológica de Ladjali: advogando a imprescindibilidade de "ler muito para escrever", para “entrar no jogo da escrita”, enche malas de livros que leva para as aulas, de modo que os alunos façam escolhas de acordo com as suas capacidades e interesses. Não pode dizer-se, portanto, que estejamos perante uma abordagem pedagógica impositiva, igualitária, cega em relação aos destinatários; pelo contrário, parte deles, centra-se neles, mas com o fito de os conduzir a um outro estádio de desenvolvimento, de lhes proporcionar outros horizontes. A professora, recusa, portanto, o destino ditado pela condição social, ao mesmo tempo que afirma a sua crença numa escola libertadora; ao defender que “os alunos merecem tudo menos a indiferença”, assume uma postura revolucionária, que muitos confundirão com conservadorismo.
Voltando a atenção para Steiner. Ainda que o leitor não encontre neste livro ideias novas, retomará aquelas que, de uma forma brilhante, o autor já expôs em vários dos seus livros e que proporciona uma reflexão sobre práticas pedagógicas. Numa altura em que tanto se elogia essa reflexão, da qual não raras vezes redunda o vazio, a abordagem deste filósofo, ao facultar referenciais de análise, imprime-lhe sentido e consistência. E isto acontece mesmo quando se trata dos dilemas essenciais com os quais os educadores mais atreitos a pensar nos seus desígnios da sua profissão se confrontam: pode a sua acção contrariar a barbárie, o declínio e morte da civilização, o vazio gnoseológico e axiológico ou, tragicamente, isso estará fora do seu alcance, como a história já pareceu provar por diversas vezes?
Quando o livro veio a lume, críticos de várias nacionalidades, nomeadamente, franceses, espanhóis e portugueses, sublinharam que ele consubstanciava um rebelo contra a pedagogia e os seus mentores, inimigos da memorização, da repetição e, em última instância, da “esperança” que Steiner advoga ser pertença de todo o aluno. Subjacente a estas intervenções encontra-se a ideia, lamentavelmente ainda muito corrente, que a pedagogia desvaloriza o saber, sobretudo o saber clássico, erudito, universal, com base na justificação de que a sua transmissão constitui um mecanismo de reprodução social. Trata-se de um equívoco que vale a pena esclarecer: a pedagogia, como ciência, não pode deixar de valorizar o saber e, portanto, uma das grandes preocupações de quem nela labora é, ou deve ser, a sua transmissão.
Em suma, trata-se de um livro admirável, que dá conta duma experiência educativa concreta, pensamos que pouco comum, e que, por isso mesmo, mereceria um estudo pormenorizado, desafio que a ilustre Sorbonne declinou, alegando que “não se preocupava com a pedagogia”. Eis uma atitude que, por amor aos clássicos, mais cedo ou mais tarde, a universidade terá de rever.
Helena Damião

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns colega...