23.2.10

Primeiro capítulo do romance "O Retorno"

1
Estava uma tarde sonolenta e chuvosa, parecia que não ia parar mais de chover. Homero preocupado aguardando uma boa notícia, aquela notícia que todo prisioneiro espera ouvir “você está livre, pode ir para casa”, o delegado prometera trazer ainda hoje. A angústia lhe apertava o coração, e de cinco em cinco minutos ele olhava através das grades de ferro em direção a sala do delegado e se pergunta o porquê de tanta demora. O seu corpo tremia, seu coração acelerava e parecia que ia ter algum treco. O que é isso? É medo? Aflição? Ou vontade de abandonar esse lugar? Viver um novo sonho livre como um passarinho. Ninguém é livre como um passarinho, nessa vida estamos sempre presos a algo como um emprego, uma dívida, uma família ou uma paixão. É mesmo! e essa paixão talvez tenha levado Homero para a prisão. Ele pensou em Vânia, como estaria aquela que foi uma grande e ardente paixão de sua vida. Aquela que foi na verdade um divisor de águas em sua trajetória, ele pode contar sua vida romântica dividindo em antes de depois de Vânia. Antes dela o que ele era no amor? Apenas uma pessoa que se relacionava e tinha medo de criar raízes, com ela mudou, pensou em constituir família, em criar raízes e esquecer de vez que tem uma dívida grande com a justiça humana e a justiça Divina. Que pena, está prestes a sair da prisão e não pode dividir esse momento com a amada. Ela foi embora, não quis saber de ficar visitando o amado na prisão. Talvez queria ser livre, aproveitar um pouco de liberdade que temos, essa liberdade de escolher onde e como viver, desde que tenhamos como sustentar, até para essas escolhas somos limitados pelo mundo.

Aparece no corredor a ajudante de ordens do delegado, uma moça bonita, recatada, simples e de gestos meigos. Gestos meigos que contrapõe com a brutalidade dos carcereiros. Ela foi denominada de ajudante de ordens porque só aparecia de vez em quando para dar alguma ordem do delegado, ou algum aviso aos prisioneiros. Avisar o horário de médico, dentista ou psicólogo. Ela chegou no corredor com um sorriso de que trazia notícia boa, sorriso maroto, se fosse outros tempos e em outras ocasiões poderia dizer que Homero se apaixonaria por aquele rosto lindo e aqueles gestos meigos. Estão distantes, ela está na sociedade e ele na marginalização, expulso de uma sociedade que compreende menos quando saem do que quando entram. Ela tem sua vida, seus amores e suas paixões, aproximou da cela e anunciou a boa notícia que ele tanto esperava. “Amanhã é o dia Homero, você vai para casa” e acrescentou por conta dela ou simplesmente para ser gentil “vou sentir saudades”. O que será que havia neste “vou sentir saudades”? Será que a presença do prisioneiro ou não fazia diferença? Ou será que era uma forma de dizer que pessoas como ele deveria voltar ali para matar a saudade?

O voltar para casa o incomodava. Como a sociedade o iria receber? Um prisioneiro vai ser pelo resto da vida um ex-prisioneiro, esse adjetivo não pega bem em nenhum indivíduo, muito menos naqueles que precisam lutar pelo pão de cada dia, aqueles que precisam trabalhar sem ter que escolher local. Ao mesmo tempo o voltar para casa trazia alegria, o poder que teria de se locomover para onde quisesse. Para onde vai? Já pensou nisso, como pensou em fugir do mundo, ou pelo menos desse mundinho criado por ele. Desse mundo de mentiras. Mas para onde vai se sempre terá que mentir? Omitir que é um assassino para poder viver em paz? O mundo é cruel, a vida foi cruel com Homero, dando a ele uma sina de assassino. Dando a ele um destino errante. Errar já não é uma boa opção, daqui para frente tem que viver de acertos. Uma pisada fora dos trilhos pode ser o fim, e o fim sempre é o fim.

“Você sai amanhã” essa frase deixou um eco em sua cabeça quando lembrou que esse amanhã era dia primeiro de Abril. Homero vai embora no dia da mentira, no dia do engano. Porque será? Será uma nova sina? Ou será que ele mesmo é uma mentira? Um personagem de uma história macabra inventado por algum maluco. Não! essa coisa de dia da mentira é algo que inventaram há muito tempo para satirizar que comemoravam a entrada de ano no dia primeiro de Abril, contrariando um papa que queria mudar as datas, ele tinha poder e conseguiu mudar. Mas o que ninguém sabe é que ele cometeu um grave erro, percebido séculos depois. Talvez para Homero o ano começa mesmo no dia primeiro de Abril. Somente nesse dia é que poderá comemorar a sua fraternidade universal, adiada por quatros anos por causa única de um erro. Erro de Homero, ou erro da justiça que o prendeu? Os dois são culpados, mas o vilão maior desse caso é a sociedade egoísta e injusta, além é claro de capitalista.

A noite para ele será curta, pressentir e sonhar com a liberdade está impossível, se agora ela é uma realidade que poderá por em prática ao raiar do sol. Manter-se acordado não fará bem para o início de uma nova vida. O descanso é bom e necessário, o mundo o espera preparado para a luta. O que dirá a vida se ele não estiver preparado? Dorme. Sonha com um encontro memorável com o mundo lá fora. Sonha com feitos inéditos, com personalidades que não viveu. O mundo o receberá de braços abertos ou o jogará a margem da sociedade?

O último amanhecer é uma visão aguardada com ansiedade pelos prisioneiros, sejam pequenas ou grandes as penas. Desde o dia em que um prisioneiro adentra a cela e é trancafiado, não importa o que ele fez, se diz inocente e imagina que no dia seguinte será colocado na rua. O raiar do sol derradeiro, observado pelas grades cilíndricas da prisão é um desejo que vira obsessão daqueles inquilinos das celas lúgubres e úmidas. Deixar para trás o “ver o sol quadrado” é um sonho diário que muitas vezes causa náusea. A náusea do ter que agüentar ludibriação dos colegas. Mesmo assim há uma certa ponta de saudade. Saudade da solidão e do silêncio noturno. Saudade dos horários preestabelecidos para refeições.

Ele está ciente de que esses quatro anos de cadeia não deixarão saudades, apenas uma lembrança que, provavelmente não esquecerá, mas é uma experiência que não quer retornar a ter. Por isso fez uma revisão e uma reflexão dos seus atos: O certo é ser correto, não andar a cata de problemas e escolher melhor os amigos. Não esqueceu e talvez nunca esquecerá que existe em seu currículo três assassinatos que cometeu nessa sua trajetória pelo crime. Não importa que foi preso simplesmente por ter comprado um carro roubado, é um assassino e ninguém desconfia disso.

No passado, num passado não muito distante, Homero matou, aos doze anos, um colega de pescaria. Matou simplesmente por um motivo fútil: tinha inveja das pessoas e raiva de sua condição econômica. Aos dezenove anos de idade voltou a cometer outro crime: matou uma namorada, simplesmente por ter, talvez inveja de sua facilidade em praticar a sua sexualidade, enquanto para Homero era um ato de extremo esforço. Sete anos depois do segundo crime ele voltou a matar, desta vez foi um de seus melhores amigos e a causa: inveja de sua felicidade. A polícia nunca encontrou o culpado desses assassinatos e o autor nem se preocupou em fugir. A sua fuga foi de si mesmo, do seu destino. Mas o destino lhe acompanha. Agora a maldição dos sete anos lhe volta a incomodar. Neste ano em que sai da cadeia faz exatamente sete anos do último ato de covardia e brutalidade que cometera. Será que é uma sina? Uma Maldição? Fica remoendo e perguntando a si mesmo. Com medo de seus atos, com medo do destino que possa prover para o seu futuro, quer ser livre. Livre para poder lutar contra ele mesmo, contra essa vontade de mudar as coisas causando infelicidade nas pessoas.

Confessar para a polícia seus crimes está fora de contexto, em seus planos existem novos rumos. Mas o que mais o atormenta está entre fugir ou ficar. Fugir para um lugar desconhecido e recomeçar uma nova vida, com novos amigos. Isso seria idêntico a época em que chegou em Alta Floresta. Ou ficar. Mas aonde está o seu destino? Aqui em Alta Floresta, ou em Presidente Prudente com a Vânia?

Vânia é a sua amada, a primeira que amou de verdade, e a única em que teve uma relação carnal com prazeres e desejos mútuos. Antes tinha apenas experimentado o sexo como algo entre macho e fêmea. Uma exploração e satisfação de desejos. Com Vânia ele experimentou o ato sexual com amor. Muito mais amor do que desejo. O desejo de invadir uma genitália feminina apenas para despejar sêmen, é diferente de desejar fazer sexo para sentir e dar prazer. Com ela era assim, um amor mútuo, um desejo mútuo e vários sonhos compartilhados, até que veio a prisão e esse amor enfraqueceu. Paralisaram os sonhos. Já não eram capazes de sonhar em conjunto. Enquanto ela sonhava em conquistar o mundo, Homero sonhava com o dia de sua liberdade. Deseja procurá-la, mas não sabe como e nem onde. Sonha e deseja tê-la em seus braços, mas não sabe se ela deseja o mesmo. O tempo, que é sempre um fator de divisão em nossa vida, fez um grande estrago. Esse mesmo tempo que ajuda a construir amores, pode num lance simples construir desamores. O amor e o ódio são frutos da mesma semente, da mesma árvore e da mesma flor. Mas como estará Vânia? Será que está feliz?

Na sua vida sempre aparecem perguntas que não consegue responder, nem ele e nem aqueles a quem ele pergunta. As melhores perguntas são aquelas impossíveis de responder, ou são aquelas que as pessoas tem medo de responder. Ele passou a sua última noite na cadeia como um anjo, talvez como um assassino disfarçado de anjo. Para que lançar perguntas ao ar, se a resposta não está no vento? O melhor é calar. O silêncio é sagrado e inteligente. O silêncio capta resquícios de vida, de saudade e destreza. Ao silêncio se produz. As melhores telas, os melhores romances, as melhores poesias são sempre criadas e aperfeiçoadas ao silêncio.

Ao silêncio também se mata, ama, e se vive. Morrer e viver são verbos congruentes e opostos. Mas ainda se morre de amor. E como se morre! Homero está nesta fase. A fase do amor possível. A possibilidade de procurar alguém que adentrou em seu coração e ficou. O seu olhar, o seu cheiro, os seus carinhos e o seu sexo estão distantes. Mas o que ficou encravado no coração, foi a lembrança de um amor puro e único. Um amor sem preconceito e sem vícios. Há possibilidade de viverem, Homero e Vânia, novamente aquele ardente romance de outrora? Sim, há! E porque não? Acreditamos que o mundo é redondo. Acreditamos numa vida circular. Por que não acreditarmos num destino que dá voltas. “o mundo dá voltas, perdemos e nos encontramos nesse mundo”

Seis horas da manhã, o dia clareando. As maritacas gorjeiam e despertam os viventes para o dia. Amanheceu, é dia primeiro, é hoje. O vizinho de cela já acordado grita para Homero:

— Cabra de sorte, vai ser livre hoje!

— Você não conta o tempo que passei aqui, minha pena é pequena. Cumpri, estou quite com a justiça, e vou embora de cabeça erguida.

— Até quando você vai manter a cabeça erguida? Cuidado a sociedade não tolera muito um ex-presidiário!

— Eu tenho minha vida lá fora. Tenho uma propriedade, e tenho uma profissão. Não vou precisar da esmola de ninguém para recomeçar. Tenho vontade e capacidade para não cometer o mesmo erro.

Um espaço de tempo, maior do que Homero esperava, ocorreu entre o diálogo com seu vizinho e o som de passos vindo no corredor em sua direção. Eram passos firmes, barulho de sapatos sociais. Havia duas possibilidades apenas: Seu advogado ou o delegado vindo pessoalmente abrir a cela e decretar a sua soltura. Era o delegado. O seu rosto era familiar, também são quatro anos de convivência, que inegavelmente nasceu uma amizade entre delegado e prisioneiro. O delegado querendo mais ensinar do que aprender. Ensinar o bem viver dentro da lei e da moral. É claro, ele está do lado dos certos. Mas até que ponto ele é correto? Seu rosto transparecia uma alegria, um sorriso disfarçado para não entristecer os outros inquilinos da humilde cadeia. Será que ele está feliz em soltar Homero? Tudo indica que sim, afinal de contas não são atitudes de um marginal violento que Homero demonstra, e sim de uma pessoa sofrida que foi julgado erroneamente por uma sociedade gananciosa.

— Pronto, Homero! é sua vez de dizer adeus e ir para o mundo. O mundo lá fora, espera que você faça dele um lugar melhor para se viver. Agora é a hora de sua liberdade. Vá! Diga para mundo que você está preparado pra viver nele.

Disse o delegado, com uma voz meio embargada e consentida, mas demonstrando felicidade, pela nova vida do prisioneiro.

— Será que o mundo me receberá bem seu Delegado? Eu não tenho medo do mundo. Tenho medo de mim mesmo, do que vou ser e fazer daqui para frente.

— Chega de filosofias Homero! Você está livre, pagou sua dívida com a justiça. Agora vai viver como um cidadão comum e de bem. Espero sinceramente que você tenha muita boa sorte na vida.

A sorte para ele era artigo de luxo, ou algo tão comum que ele não percebe. Será que é sorte cumprir pena apenas por um crime? E os outros? Ou será que é azar ter passado 04 anos na cadeia escondido do mundo? Talvez. Algumas vezes ele confunde-se, mas sabe que na realidade tem sorte quem acredita nela. É necessário aproveitar as oportunidades para dizer que tem sorte. O mundo é assim: dos espertos, ou melhor, daqueles que aproveitam bem as chances que aparecem. O destino está dando a Homero mais uma chance de batalhar e vencer na vida. Mais uma chance de prosseguir em seu caminho. Uma chance, talvez a última de quitar seu débito com o mundo.

Ele caminha vagarosamente para a liberdade, ou melhor para fora do recinto que o acolheu por quatro anos. Queria saborear melhor essa ponte entre a reclusão e o horizonte. Queria saborear minuciosamente a ponte entre as paredes frias e o aroma de folhas novas da alameda. O que é a liberdade do que senão poder apreciar os pássaros e sentir a respiração do vento na face?

Na sala do delegado, o último reduto até a porta da rua, sente um ar de desprezo, ninguém o espera. Pega silenciosamente seus documentos e questiona ao delegado se ninguém veio lhe buscar.

— Seu amigo Paulinho está te esperando lá fora. Ele quer ser o primeiro a lhe ver e abraçar sob a luz do sol. O sol da liberdade. Ele quer ser seu guia nos sonhos e desejos.

— Meu guia é meu destino, não acredito em destino, mas acredito que alguém lá em cima quis que eu pagasse uma dívida. Ou tivesse uma lição.

As portas, as sonhadas e temerosas portas que dão acesso a rua foram abertas. Homero está autorizado a caminhar, a seguir o seu nariz. Quem diria que um dia ele teria que ter permissão para caminhar. Permissão para fazer o seu caminho interrompido. O caminho que ele acreditava que só se construía caminhando. A luz do sol lhe ofusca um pouco a visão, consegue ver um homem vindo em sua direção, sorrindo. É seu amigo que lhe dá um abraço apertado e lhe deseja que seja bem vindo.

— E aí Homero? Vamos pra vida? Você parece melhor agora do que quando entrou.

— Uma temporada recluso provoca mudanças repentinas e duradouras. Temos que mudar senão ficamos para trás, o mundo caminha e muda.

A conversa foi pouca, e foi mínimo o olhar para a fachada da cadeia. Um olhar de adeus ressentido, como se fosse impossível perdoar a justiça por ter lhe prendido. E quem é tem que pedir perdão a quem?

Um adeus melancólico, colocando a flor da pele o rancor e o ódio que sentiu na prisão, tudo foi aflorando em seu rosto. A cabeça esquenta, o sangue sobe pelas têmporas. A cabeça dói. Não é o efeito do sol leve da manhã de primeiro de Abril, é a agitação sangüínea a percorrer em alta pressão os vasos, artérias e veias incham. Sua cabeça parece que vai explodir. Solicitou ao amigo que o levasse dali o mais rápido.

O caminho de casa é sempre como um retorno ao ventre materno. A busca do aconchego e do repouso. Um lugar de refúgio e solidão, a casa é sempre a nossa casa. Mesmo que ridículas e mal tratadas são sempre o lugar ideal para um refletir sobre a vida pregressa. Essa volta para Homero é muito mais significativa do que emocionante, significava o retornar ao seu destino de pedreiro que ama a Vânia. Voltar ao seu destino de fuga constante da justiça e do passado que massacra seus sonhos.

O caminho de casa é penoso, uma mistura de satisfação e medo. Medo do que? Agora está livre, livre das grades de ferro. Livre das garras do destino torto. Agora é certo? O que é certo?

— Homero ! você já pensou o que vai fazer amanhã?

— O que tem amanhã?

— Ora, é Sexta feira!

— Deixe o amanhã chegar, eu nem sei o que vou fazer hoje. Preciso planejar algumas coisas. Não sei se fico aqui ou vou embora por aí.

— Você vai procurar a Vânia? Olha ela mora no Bairro Santa Clara, ao lado de uma escola de informática.

— Não sei se a Vânia ainda faz parte dos meus planos. Ela praticamente me abandonou quando fui preso. Não acreditou em mim. Preferiu ir embora a ter uma relação com um presidiário.

Abertamente Homero não poderia admitir que ainda amava e muito Vânia. Mesmo depois dela ter feito o que fez. Mas porque ele teria que admitir? Todos os seus amigos, e até os companheiros de cela sabiam dessa paixão que nutria por ela. Mas existe algo que, por ele, quer esquecer a amada, esse algo é o brio, um respeito por si mesmo. O respeito que sente pelos seus sentimentos força a não procurar pela Vânia. Que a Vânia seja mais uma que passa por sua vida. Agora o que deseja ardentemente é refazer o seu caminhar. Procurar trabalhar e fazer aquilo que todos desejam: juntar dinheiro.

Em casa ele ficou sozinho. A vida é para se viver sozinho. “Não! Eu estou sozinho por escolha, abandonei a família ou melhor, o que restava de minha pequena família, por que quis.” Seus pensamentos travavam uma batalha entre o ficar ou fugir. “Fugir para onde? O mundo é imenso, mas há limites. Fugir para o bar da esquina e encher a cara. Não! Não preciso disso, há bebidas em casa. Cervejas na geladeira e alguns licores no armário. Beber para que? Para espantar os males! mas, que males? Os males das lembranças. Não é preciso beber para fugir de lembranças nem boas nem ruins. É necessário estar sóbrio para enfrentar o mundo. É preciso, mais e mais preciso estar sóbrio para não denunciar o autor de crimes horríveis do passado. Terei que enfrentar a vida como ela é e como me foi destinada. Se tiver que esquecer meu amor por Vânia, esquecerei. Se tiver que...”

Mas no mundo nem tudo parece como se prega, ou nem tudo é como se prega. Foi até a geladeira pegou uma lata de cerveja e a emborcou, sua sede e vontade era tanta que nem ao menos apreciou o sabor. Bebeu como o Miro que tomou um litro de pinga na praça, sem tirar a boca do gargalho. O Miro estava cometendo uma loucura e ainda estava sendo incentivado por algumas autoridades da cidade. O que é isso? Os que pregam a paz e a ordem fazendo aposta para que o Miro tome o litro de pinga e saia rasgando dinheiro como saiu. Não, Homero não é um cachaceiro que bebe pelo prazer de ficar traçando as pernas no caminho de casa. A sua cerveja tinha um sabor de batalha vencida e vingança. Era o desfrutar de um prazer há muito proibido. Mas toda bebida alcóolica tem um efeito negativo. Ele olha atentamente para a lata de bebida como se quisesse decifrar os grifos das mensagens escrita na lata, e subitamente joga-a contra a parede e grita:

— Vânia! Sua desgraçada! Porque me abandonou no momento em que mais precisava de seu apoio? Será que seu amor não era verdadeiro como você dizia? Me diga?

Abriu o armário e serviu-se de uma superdose de Martini, tomou em três goles, como se fosse para matar a sede e não para sentir o prazer da bebida.

— É isso que ganho por amar demais. É isso que eu ganho ter amado você Vânia? Quatro anos de cadeia. Cadê você? Porque que não foi me buscar? É por você isso, só por você?

Ao fim avaliou suas pequenas ações nessa manhã em que a liberdade deu seu ar de graça e lhe sorriu. Avaliou como estava aproveitando a liberdade enchendo a cara. Não percebeu que poderia cometer um crime contra sua própria pessoa. Gritava que não era um bêbado e gargalhava a cada bobagem que dizia. A sensação de poder fazer o que quer estava extrapolando seus limites. Abriu a geladeira várias vezes, pegava uma lata de cerveja e tomava pela metade. Jogava o resto juntamente com a lata na parede da cozinha, e depois vinha correndo e chutava a lata para fora como se fosse uma bola de futebol. Isso é a liberdade! gritava. Alguns vizinhos já imaginavam louco. Mas, apesar das bebidas que tomava, parecia consciente do que dizia. Não podia perder a moral diante dos vizinhos, por isso parou e foi deitar um pouco. No quarto ligou a televisão, passou por todos os canais possíveis e não encontrou nada interessante, desligou a TV, ligou o ventilador e deitou.

O sono cura os males que os homens causam a si mesmos, a bebedeira requer sempre uma boa soneca para sua cura, o sono também acalma os corações ansiosos. Bendito aquele que consegue dormir e dormir bem, para que a vida possa encontrar um novo rumo ao amanhecer, ou ao despertar com nova coragem e novas energias. Energias para enfrentar as batalhas do destino. O sono revigora e coloca nos devidos lugares as pulsações nervosas. O ato de dormir é ainda melhor quando contemplado com um sonho que alimenta nossos desejos e nos impulsiona para mais e mais batalhas na guerra da vida. Foi assim com Homero, naquela manhã em que deitou com raiva e com ódio da vida que tivera, e desejoso de reencontrar o amor de sua vida, ele sonhou com o retorno aos braços de Vânia, sonhou que ela estava a espera dele, sozinha, em seu canto de refúgio, em seu canto especialmente criado para relembrar os amores. Primeiro o Leandro ceifado pela malária contraída no garimpo e Homero, amigo e depois amante. Amor verdadeiro daqueles impossíveis de esquecer até o fim da vida. Para Homero, Vânia era esse verdadeiro amor. Quatro anos fazia que não a via, mas pensava nela com muito carinho e sonhava com ela ter uma vida a dois, ter uma família e aquietar-se num canto. Esse canto pode ser escolhido por sua amada. No sonho ela o chamava ao seu encontro, isso para ele era mais do que um sinal do destino que uniria ambos em busca da tal felicidade que sempre falavam. Os sonhos são lindos, ou nós que criamos essa beleza que aparece? Parece uma realidade impossível, o que nos dá margem de acreditar ou não.

Alguma coisa dizia que aquele sonho pode ser possível. Reencontrar com Vânia depois de muito tempo não é tão impossível, só dependia dele ir procurá-la. Mas ele sabia também que deveria estar preparado para todas a reações possíveis, ou melhor, para o recomeço da paixão como para a rejeição completa. Restava saber como ele reagiria com uma possível rejeição de Vânia. Será que o seu instinto animal não renasceria dentro de seu coração a ponto de cometer mais um crime? Era isso que teria de verificar, era isso que teria enfrentar e por isso teria que controlar os seus atos.

Dormiu até as duas horas da tarde, não era seu objetivo dormir tanto, deveria aproveitar o seu primeiro dia de liberdade para fazer algo mais útil. Mas o sono foi bom, reanimou os seus desejos de continuar a luta pela sobrevivência, deu mais vida e energia para continuar o seu destino num rumo mais certo que o comum.

Durante o seu longo sono, Paulinho retornou para ver o amigo e como estava num sono profundo o deixou em paz. Era a paz para prosseguir que Homero precisava. Paulinho viu aquela bagunça em que tinha transformado a cozinha e compreendeu a raiva que o amigo tinha passado. Haverá mais oportunidades e tempo para que ele possa exumar e expelir de dentro de si todo o ódio que acumulou na prisão. Para o amigo, Homero sempre foi inocente, uma pessoa livre de qualquer maldade, preso por esconder e defender um outro amigo. Não sabia ele o que se passava na cabeça de Homero, nada sabia do seu passado horrendo, nada sabia dos desejos ocultos que o amigo e companheiro tinha em cometer crimes contra a humanidade. Nada sabia ele, que Homero era um assassino frio que matou dois amigos e uma namorada. Mas quem importava com isso? Até Homero queria esquecer desse passado que lhe persegue e perturba os seus mais belos sonhos e desejos.

Para Paulinho, Homero era um amigo sem grandes pecados, que injustamente a justiça sujou o seu nome, colocando-o atrás das grades como criminoso. Era um amigo que merecia ser feliz. Se nesse primeiro dia fora das grades ele extravasou suas emoções tem todo direito.

Quando levantou, Homero já tinha novos planos para a sua rotina. Voltar a trabalhar e fazer render um pouco seu dinheiro guardado. Ainda tinha um bom saldo na poupança, graças ao Paulinho que não permitiu que ele gastasse com a contratação de advogados. O que tem guardado dá a ele um pouco de folga e até mesmo a oportunidade de montar um negócio próprio. As coisas podem melhorar. Outro sonho é procurar a Vânia e quem sabe, visitar sua mãe e os parentes que ficaram tão distantes.

Planejar a vida é bem melhor em liberdade do que preso e limitado a quatro pequenas e sujas paredes. A liberdade é uma honra, agora que passou um bom período na cadeia, a liberdade deixou de ser um direito natural para ser algo conquistado com agruras e por isso deve-se valorizar. O poder de caminhar nas ruas na hora em que tiver vontade é um sonho para aqueles que se encontram prisioneiros. Mas não é só planejar, tem que ter uma lógica e correr para que as coisas aconteçam. São quatro anos que ficaram num vácuo, jamais retornam e precisa ser recuperado.

Homero Chaves um ex-presidiário caminhando despreocupado nas ruas da cidade. Muitos que olham não sabem de sua história, sabem apenas que estivera preso por quatro anos, sabem apenas que fazia parte de uma quadrilha que roubava carros e traficava maconha, só isso. Ninguém mais sabe de seus assassinatos no passado, aliás, até mesmo ele desconfia que tivesse matado alguém por nada. Como pode? Esquecer jamais esquecera. Sempre tem que tomar conta de suas atitudes para não exceder e voltar a cometer crimes. O seu caminho está sendo traçado pelo seu comportamento, não se deve desviar nem um pouco, senão pode cair num abismo sem fundo e sem volta.

Enquanto caminhava procurando aproveitar a doce brisa de uma tarde sem chuva, pensa em Vânia, o seu amor, a sua grande e única paixão, que o abandonara quando foi para a prisão. Talvez ela tinha razão, pensou. Quem agüentaria ter que amar um presidiário. Esperar é o que ela menos queria. Mas ele, mesmo depois de quatro anos ainda espera por ela, ainda espera que ela compreenda e volte para os seus braços. Onde ela estará? Como ela estará? Será que ainda pensa nele?

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