30.4.12

A Rua Onze

Trilhos e caminhos suaves são brutalmente trocados por verdadeiros degraus onde a enxurrada das impiedosas chuvas é o moderno engenheiro.
Se houve encanto não saberei dizer, mas ouviam-se cantos vindo de lugares que não eram misteriosos, mas que em muitos metiam medo.
O tempo não foi mais forte que o vento mas fazer esquecer seria tentar realizar o impossível. Ouve-se do vácuo incorrigível dos sons, que outrora poderiam ser ruídos, um choro sem lágrimas. Encontram-se na falta dos suaves caminhos e além das esculturas naturais, ossos sendo corroídos. Ossos que não são do ofício e nem do barão, mas que, sem dúvida, poderiam ser de um amigo fiel.
O que foi um sonhado progresso, hoje se realiza sem progresso, e o sonho, um sonho frustado. Lamentar que ontem sonhamos alto demais é desistir de sonhar por um ideal hoje.
Mentiras foram ditas através das cortinas de água e poeira, quando a verdade se estampava e caminhava na frente dos enganados que se imaginavam espertos.
Invisível não era, pois estava ali e desfilava com um sorriso de vitória fácil. Morrer, ainda não morreu, continua ali resistindo. Sobreviver é preciso, já ouvi esta frase antes, e mais ainda progredir. Parou. O tempo não parou, mas ela sim. Algum dia alguém perguntará porque ela é tão medieval.

O que houve com a rua Onze?

Onde estão os seus freqüentadores indecentes e depois decentes, que eram diferentes e hoje mostram os mesmos semblantes tristes e caminham cabisbaixos?

Valter Figueira
Cronica publicada nos Livros:
" A semente caiu em terra fértil"
"A morte do Xerife"
  

11.4.12

Dia de mentira sem ser dia da mentira


Por Glauco Mattoso

Em se tractando de parlamentares tupiniquins, a mentira não está liberada no primeiro de abril: ella vale em todos os dias (uteis) do anno, seja a quarta-feira de cinzas ou de pauta cheia no plenario. E si a falsa productividade parlamentar ja virou motivo de anecdota no plano federal, nas camaras municipaes é folklorico, faz tempo, o byzantinismo dos vereadores, isso quando chegam a apresentar algum projecto, por exemplo, para baptizar a rua Confluencia da Forquilha (onde ja morou o Lourenço Mutarelli) ou para crear o Dia da Vovó (como si a coitada pudesse ser avó sem ter sido mãe), sendo a mais recente babaquice aquella que tentou instituir em Sampa o Dia do Orgulho Heterosexual. O prefeito até signalizou que sanccionaria tal lei, só para fazer media com a bancada evangelica que a propunha, mas, para não passar vexame, acabou tirando da recta na recta final. Seria engraçado (si não fosse pathetico) assistirmos a commemoração de tal data com uma Parada do Orgulho Masculino, mas a coisa se affiguraria mais tragica si vingasse alguma proposta para a creação do Dia Internacional do Homem, do Dia da Consciencia Branca ou do Dia do Cara Pallida... Affinal, os gays, como as mulheres, os negros ou os indios, teem menos o que celebrar do que o que reivindicar, dahi a necessidade de, pelo menos, uma data de mobilização.
Ora, de vez em quando ouço no radio que (em 30 de septembro) "hoje é o dia do edoso" ou que (em 26 de maio) "é o dia do glaucoma", ou que (em 26 de março) "é o dia do chocolate". Quando accordo de veneta, visto a carapuça e faço um soneto para glosar o motte. Nessas trez occasiões, compuz, nem sempre de bom humor, exemplos que vou mostrando nesta columna. No caso do glaucoma, o soneto ja tinha apparecido no capitulo 27, postado no anno passado. Os outros dois seguem abaixo.

DIA DO EDOSO [4754]

Segundo a millennar sabedoria
judaica, envelhecer não é problema.
"Não seja catastrophico! Não tema!"
Assim diz o rabbino, e sentencia:

"É tempo de colher o que se havia
plantado...", explica o sabio. O estratagema
funcciona quasi sempre, mas o thema
afflige aquella typica judia.

Nervosa, apprehensiva, ella compara
seu caso ao do habitante do deserto,
logar onde ninguem jamais plantara...

Responde-lhe o rabbino: "Mas, bem perto
dalli, na terra fertil, minha cara
senhora, quem plantou colher quiz, certo?"


Quando foi em 14 de março, annunciaram que era o "dia nacional da poesia" por marcar o nascimento de Castro Alves. Não costumo prestar attenção nessas ephemerides natalicias ou mortuarias, mas me fiei na informação e compuz este soneto:


GRATA DATA [5131]

Si tudo vale e tudo tem seu dia,
me alegra que o poeta tambem seja
lembrado, ao menos, quando se festeja
o dia nacional da poesia.

Eu sei que é redundancia, mas queria
ser, como certos sanctos são na Egreja,
saudado, caso alguem que ja não veja
Homero seja, como se associa.

Talvez assim eu fosse, por tabella,
motivo dumas palmas, dum trophéu,
siquer sem fazer parte da panella.

Deixar, por um só dia, de ser réu,
comtudo, em nada ajuda, nem protela
o inferno que me aguarda apoz o céu.

[Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]
Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias "VÍCIOS PERVERSOS: CONTOS ACONTECIDOS" e "POESIA DIGESTA: 1974-2004", além dos romances "MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR: AVENTURAS & LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS" e "A PLANTA DA DONZELA".
E-mail: glaucomattoso@uol.com.br