Por Nara Rúbia Ribeiro
Liguei a TV. Algo de medonho havia ocorrido. Dados
alarmantes, números bizarros e depoimentos diversos davam notícia de que o
futuro havia chegado de mãos dadas com o fim. Tudo pareceu-me desolado. A
economia desconsolada, o Judiciário vendido, a democracia vilipendiada. E
mortes e insegurança e indignação e desespero… Deus! Quem foi que violentou a
alma do mundo para que tudo sangrasse assim, com tanta força?
Mas eu tive a ousadia de desligar a TV. Eu tive a audácia
de não ler jornais. Eu tive o despreparo de andar pela rua e de observar
pessoas, coisas e tentar enxergar abstratos.
Uma mãe segurava a mão do filho pequenino e dizia:
– Não, Artur. Depois do “3” não vem já o “5”. Vem o “4”.
Uma senhora sorriu, escorada no umbral da entrada de uma
casa, ao perceber a confusão numérica da criança. E prosseguiu observando mãe e
filho a sumirem de vista, enquanto acariciava um gato vira-latas que parecia
também observar a cena.
Havia flores nos canteiros das casas e crianças
uniformizadas, ainda sonolentas, seguiam para a escola. Passarinhos povoavam os
fios de alta tensão como se a delicadeza desafiasse a força, como se as penas
blindassem as suas almas da violência do mundo. Em meio ao barulho dos
automóveis, quem tivesse o ouvido inclinado à beleza poderia ouvir o canto
indecifrável desses pássaros.
Um jovem me viu parada a observar essas coisas e
perguntou-me: – Você está bem? A custo compreendi a pergunta, e respondi:
– É um bom dia, não é? Ele acenou com a cabeça positivamente, e seguiu caminho.
E vi muitas pessoas sorrindo e contando anedotas. Vi um
beija-flor meio perdido entre flores de vida e rosas de plástico, mas ele
sobreviveu. Vi pedrinhas coloridas numa calçada. Ouvi o porteiro do prédio a
relatar, a um amigo, o desfecho triunfal de sua noite de amor.
E percebi que a ausência da vida é resultante do
distanciamento da sua essência. Percebi que as verdades poéticas e cotidianas
não são notícia. Quem quer saber de beija-flores confusos ou de pequenos
aprendizes matemáticos? Quem quer noticiar a glória de pássaros que desafiam a
insensibilidade das almas? Quem quer saber de tudo isso se nem sabe que isso
existe?
As pessoas necessitam da dor dos noticiários. Necessitam
de ver o sangue, a violência, a podridão do mundo porque querem urgente e
desesperadamente compreender o que lhes dói. Elas precisam saber o que fez do
seu peito um oco, um vazio, um vão imensurável e doído. Elas precisam saber da
origem do nada que as incomoda, o nascedouro do apego ao concreto, a gênese de
sua indiferença, a origem do medo generalizado que arrebata o sentido. E é isso
que o noticiário vende!
Estou farta de ver holofotes plenos à mediocridade dos
homens. É preciso entender que o Homem é maior do que é. É preciso compreender
e amar a beleza que germina em todas as coisas e antever a árvore
frondosa e a doçura do fruto. É preciso valorar as pequenas delicadezas, as
imperceptíveis gentilezas. É preciso ver a beleza que existe, talvez ainda
embrionária, em cada um. É preciso que a alma não se renda à morte vendida nos
noticiários, e ainda se mostre rendilhada e rebordada na afeição de pequenos e
reiterados gestos.
Por isso eu o convido, hoje, a ter a ousadia de desligar
a TV, de desconectar-se das redes sociais que tantas vezes destilam ódio, de
não ler jornais. Convido a fazer uso do seu wi-fi interior. Da sua antena superior. E
conectar-se às belezas que o circundam. Sintonizar-se com o encantamento que
paira sobre o inusitado das existências anônimas, das pessoas anônimas, dos
objetos e seres desimportantes. Afinal, se essa beleza nos preenche, porque
haveríamos de justificar os vazios?
Goiânia, 13 de março de 2015
Nara
Rúbia Ribeiro
Escritora, advogada e
professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial
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